Convenções sociais de gênero, políticas públicas e trabalho doméstico. Uma relação que explica a dinâmica da sociedade brasileira contemporânea

It takes a village to raise a child.
Provérbio africano

Desnecessário dizer da grande relevância de se discutir questões atinentes ao trabalho doméstico no Brasil. Principalmente porque, mesmo com todas as transformações ocorridas na sociedade brasileira ao longo dos últimos anos (os núcleos familiares estão cada vez menores, ganham importância as famílias monoparentais e unipessoais, ainda que timidamente, vem crescendo o número de casais sem filhos, cada vez mais mulheres são identificadas como principais responsáveis pela família, a população está cada vez mais urbanizada e escolarizada, além da grande entrada das mulheres no mercado de trabalho nas últimas décadas), o país continua a ocupar a primeira posição em número de empregados(as) domésticos(as) no mundo, segundo dados da Organização internacional do trabalho (OIT). São 7,2 milhões de domésticos no Brasil, dos quais 93% são mulheres.

Mas, paremos um pouco para refletir sobre as causas deste número tão elevado de domésticos em nosso país…..O que qualifica o Brasil como um país que abriga o maior número de trabalhadores domésticos? Qual estrutura societária é esta capaz de fazer crescer o número de domésticos mesmo após as transformações citadas acima?

Em minhas pesquisas, vi que “o buraco é mais embaixo”, e que alguns aspectos estão tão fortemente ligados, que acabam por alimentar o sistema que mantém viva a necessidade dos serviços prestados pelos domésticos(as). Explico.

Inquestionavelmente, o trabalho doméstico faz parte do legado histórico patriarcalista e escravocrata do Brasil, em que as funções domésticas eram exercidas por mulheres negras. As raízes de nossa colonização moldaram a sociedade brasileira que, diferentemente de algumas outras, está habituada com a relação mestre/servo. Percebe-se, pois, que o trabalho doméstico sempre foi desvalorizado, tendo sido alvo de grande desproteção social e tratamento desigual  no que tange ao acesso aos direitos trabalhistas.

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Jean-Baptiste Debret

Além dos fatores históricos, os persistentes machismo e patriarcado influenciam na manutenção do trabalho doméstico como uma porta de entrada das mulheres no mercado de trabalho. O padrão de divisão sexual do trabalho, que atribui à mulher a responsabilidade pelo cuidado da casa e dos filhos, ainda é muito forte na sociedade brasileira. Responder pela limpeza da casa e pelo cuidado da família são atividades que historicamente ainda são atribuídas às mulheres.

Em 2008, 86,3% das brasileiras com 10 anos ou mais afirmaram realizar afazeres domésticos, contrapostos a 45,3% dos homens. Além desta diferença, enquanto as mulheres despendiam, em média, 23,9 horas por semana na execução de tarefas domésticas, os homens gastavam 9,7 horas (vide tabela abaixo). A sobrecarga de trabalho à qual estão sujeitas as mulheres que conciliam atividade profissional com responsabilidades familiares infui diretamente na participação delas no mercado de trabalho e na concorrência com os homens, os quais são vistos como mais disponíveis para se dedicar ao trabalho e para ocupar cargos de poder.

tabela_horas_trabalho

A sociedade passou por um expressivo processo de mudança social, econômica e política, que deveria ter sido acompanhado pela legislação, bem como por políticas e serviços públicos mais adequados à nova realidade. Entretanto, não é esta a realidade que presenciamos hoje, em que as políticas sociais brasileiras são, na maior parte das vezes, fundamentadas em um modelo estrito e convencional de família, o de casal heterossexual com filhos, onde o homem representa o provedor exclusivo e a mulher a cuidadora. Desta forma, reforçam-se as convenções tradicionais de gênero, as quais estabelecem uma relação direta entre a mulher, o feminino e a feminilidade com os afazeres domésticos.

Muitos países e seus governos já passaram a ver a criação dos filhos como uma obrigação de toda a sociedade, e não somente dos pais. Neste sentido, imperioso investir em uma política permanente e universal de apoio às famílias, por meio de um conjunto de ações deliberadas, coerentes e confiáveis do poder público como dever de cidadania, socializando-se os custos da criação dos filhos.

Alguns importantes exemplos de medidas necessárias e compatíveis com o novo perfil da sociedade são: o investimento em creches públicas e privadas, em transporte escolar, em atividades de lazer e cultura para as crianças, em escolas públicas em tempo integral, no abrigo de idosos, em políticas de acesso e permanência de crianças com deficiência nas escolas, no serviço de cuidado a doentes mentais, dentre outras medidas que permitam a execução de atividade profissional pela mulher (com as mesmas oportunidades de trabalho existentes para os homens) sem que haja prejuízo de suas responsabilidades familiares, além de mecanismos de responsabilização masculina pelas tarefas do dia-a-dia.

Os dados da PNAD/FIBGE, 2002 revelam que a rede de creches e pré-escolas no Brasil está longe de atender à demanda da população em geral e das mulheres trabalhadoras, em particular. Conforme tabela abaixo, cerca de 36,5% das crianças brasileiras de 0 a 6 anos, em 2002,  frequentavam creche ou pré-escola. Na faixa etária de 0 a 3 anos, o percentual cai para 11,7%. Se esta constatação é extremamente relevante do ponto de vista das necessidades das trabalhadoras, também é grave da perspectiva dos direitos das crianças, assegurados pela legislação brasileira.

creche

Ao longo de toda a história do Brasil, os costumes domésticos têm dispensado estruturas sociais de cuidado, permitindo a redução de investimento público em áreas cruciais da sociedade e alimentanto uma demanda em espiral por trabalho doméstico (Costa, 2014).

Em Montréal, aonde moro atualmente, o que percebo é que as políticas públicas e privadas para auxílio na criação dos filhos são bastante efetivas e repercutem tanto nos pais, quanto nas próprias crianças. Há um grande número de creches (aqui conhecidas como garderies) que recebem as crianças desde os primeiros  meses de vida. Nestes locais, os pequenos interagem entre si, recebem as primeiras instruções e se tornam mais independentes. Os pais, por outro lado, ficam liberados para trabalhar e, os empregadores, normalmente, compreendem a necessidade de sair para buscar o filho na creche, mesmo que seja às 16:30h. Para os maiores, existe transporte escolar de qualidade e segurança. Empregada doméstica é artigo de luxo. As que frequentam um lar o fazem somente para a limpeza pesada, muito raramente vão se ocupar dos filhos.

Dada à relevância da matéria, a questão atinente à responsabilidade familiar foi, inclusive, objeto de convenção da Organização internacional do trabalho (Convenção 156 sobre a igualdade de oportunidades e tratamento para trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares), complementada pela Recomendação 123, as quais definem o conceito de responsabilidade familiar e sugerem políticas. A Convenção 156, tendo entrado em vigor em 1981, não foi ratificada pelo Brasil. (Em razão da relevância da Convenção supra, disponibilizo o texto integral –  convencao_156_).

A dinâmica da sociedade brasileira contemporânea se torna ainda mais clara quando analisamos o fenômeno do trabalho doméstico remunerado que, ao mesmo tempo que viabiliza a inserção das mulheres mais escolarizadas no mercado de trabalho, é viabilizado pela convenção de gênero (associação entre o feminino e o trabalho doméstico), bem como pela ausência de medidas públicas e privadas condizentes com o novo perfil da sociedade brasileira.

Desta forma, tem-se que os dois polos opostos de inserção das mulheres no mercado de trabalho são, na verdade, complementares. As mulheres mais escolarizadas se lançam no mercado de trabalho, na verdade, porque podem delegar as atividades que lhes são atribuídas no âmbito das famílias a outras mulheres. Muitas destas, por sua vez, delegam a outras mulheres, em regime remunerado, ou de favores. Com isto, forma-se um verdadeiro encadeamento de mulheres na sociedade brasileira, que se ligam por meio da atribuição pelas atividades domésticas.

Em resumo, pode-se dizer que é preciso a concorrência de diversos fatores para que o Brasil ainda seja classificado como o primeiro no mundo em número de empregados doméstico e, neste post não cuidamos de tratar de todos eles. Entretanto, a ligação entre as convenções sociais de gênero, que ainda colocam as mulheres como responsáveis pelas atividades do lar e cuidado dos fihos, a carência de políticas públicas e privadas no sentido de socializar os custos da criação dos filhos com as famílias e o trabalho doméstico demonstra a presença de um ciclo vivo e permanente que caracteriza a sociedade brasileira. Em outras palavras, as mulheres se lançaram no mercado de trabalho mas, em razão da persistente associação delas ao trabalho doméstico, bem como da ausência de políticas públicas que viabilizem o seu trabalho externo, estas mulheres trabalhadoras acabam por contratar outras mullheres, as domésticas, para fazerem as atividades do lar e cuidar de seus filhos.

É preciso reconhecer que os problemas de trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares são aspectos de questões mais amplas relativas à família e à sociedade que devem ser levados em conta nas políticas nacionais. É necessário, ainda, romper com o persistente padrão de divisão sexual do trabalho para que as igualdades de gênero se diluam e a igualdade de oportunidades seja uma realidade entre homens e mulheres.

Lições da nova geração para o ano de 2015

Caros leitores,

Após um pequeno período em terras brasileiras, aproveitando o calor do sul, estamos de volta ao trabalho, com muita alegria para fazer de 2015 um ano especial!

E, para começar este ano com bastante esperança, bom humor e vontade de ver as mudanças que desejamos no mundo, indico assistirem ao pequeno vídeo abaixo. É apaixonante ver essa nova geração falando sobre como se deve tratar uma mulher!

Desejo um feliz, abençoado e maravilhoso ano para todos os leitores e suas famílias. Que possamos nos amar mais, respeitando a individualidade de cada ser.

Em breve retomaremos nossa jornada pelo mundo feminino, com novos posts e entrevistas, os quais estão sendo preparados com muito carinho.

Meu abraço carinhoso.