Tive o grande prazer de assistir à uma pequena palestra concedida por Chimamanda Ngozi Adichie, nigeriana, militante feminista e autora de quatro livros, o último deles intitulado “Sejamos todos feministas”. Nesta breve palestra (vídeo abaixo), Chimamanda esclarece os perigos de se contar apenas uma metade das histórias. Relatando brevemente fatos de sua vida pessoal, enquanto africana, ela defende a ideia de que toda história, quando relatada somente sob uma ótica, gera incompreensões e submissão de uma das partes. Chimamanda, apesar de feminista, nada disse à respeito do movimento nesta oportunidade. Mas, ao escutar suas palavras, consegui fazer um paralelo que, a meu ver, é importante para a causa das mulheres.
Chimamanda, quando foi estudar em uma universidade nos Estados Unidos, pôde confirmar sua tese sobre a gravidade de se contar apenas uma parte da história. Ela conta que sua colega de quarto sentiu pena dela “de cara”, antes mesmo que ela pudesse contar mais sobre sua vida. Ou seja, o simples fato de Chimamanda ser nigeriana já foi o suficiente para incitar a piedade de sua colega. Mas isso porque, em geral, a mídia e todos os demais veículos de divulgação de informação mostram as “misérias” do país, focando sempre em aspectos negativos. Pouco se diz da cultura, dos alimentos e de outras particularidades da vida na África. Esse é apenas um exemplo dos milhares de outros que existem. Muitos de nós brasileiros já passamos por situações como a de Chimamanda, graças à desinformação coletiva acerca de tudo aquilo que não envolva poder. Eu mesma, quando fiz intercâmbio para o Canadá, aos 16 anos, fui perguntada se nós morávamos em árvores, se havia telefone, dentre outras aberrações.
Tendo dito isso, faço um paralelo com a história das mulheres, a qual foi em grande parte omitida, graças à disparidade de poder, que sempre colocou a mulher em posição de submissão em relação ao homem.
Analisemos a história que aprendemos nas escolas. Trata-se de uma história de homens e contada por homens. Aprendemos sobre a antiguidade greco-romana (período da história da Europa que se estende aproximadamente do século VIII a.C., até a queda do Império Romano do ocidente no século V d.C.). Sobre este período, estudamos a arte, a literatura e a mitologia. Ouvimos falar de grandes homens, como Homero, Platão e Pitágoras. Tudo certo, mas aonde estavam as mulheres neste período? Da forma como a história nos foi relatada, parece-me que a sociedade antiga era composta apenas de homens. Por que será que nunca soubemos qual era a realidade das mulheres neste período? Acredito que em nenhum momento houve real interesse em se relatar a realidade da segunda metade da humanidade. Por isso, vou contar um pouquinho.
Em Atenas, somente os homens eram considerados cidadãos, estando certo que a democracia ateniense excluía por completo as mulheres, os escravos e os estrangeiros. As mulheres não tinham acesso ao espaço público e deveriam se confinar em suas pequenas casas (os homens permaneciam fora de casa quase o dia todo, razão pela qual não construíam grandes casas), cuidando dos afazeres domésticos e dos filhos. Era uma sociedade extremamente permissiva no que tange às relações homossexuais, vez que havia o culto ao corpo masculino e uma relação muito próxima entre os homens, que eram cultos, inteligentes e belos, em oposição às mulheres que obviamente eram menos interessantes, já que iletradas e desconectadas de vaidade e beleza. Aristóteles (384-322 a.C), que teria influenciado enormemente diversas civilizações, afirmava que o ser feminino é incompleto. Para ele, todas as características herdadas pela criança estavariam presentes no sêmen do pai, sendo a mulher somente um instrumento, um meio físico que possibilita a transmissão da descendência do homem. Dizia, ainda, que a mulher era imperfeita e que por isso o homem deveria guia-la e comanda-la. Segundo ele, “a natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem inferior.” [ Aristóteles ].
Platão (428-347 a.C) também comungava de pensamentos similares aos de Aristóteles no que concerne à mulher, tendo dito que “a natureza da mulher é inferior a do homem na sua capacidade para a virtude.”
Como podemos perceber, a lógica grega e a razão masculina contribuíram para afirmar a inferioridade da mulher em relação ao homem. Entretanto, o modelo de posse do corpo feminino se torna ainda pior, já que as religiões acabaram por atribuir a todas as mulheres um pesado fardo, capaz de questionar a sua moral, o que, de alguma maneira, ainda está presente nas sociedades contemporâneas.
As religiões atuaram, durante a história, como um grande fator de perpetuação da opressão e da inferiorização do sexo feminino. Não falo de uma religião específica, mas de todas elas, sem exceção.
À ideia de deficiência racional das mulheres, proveniente dos Gregos, juntou-se a deficiência moral, difundida pelos judeus. Isto significa que a mulher passou a ser inferiorizada não somente por sua natureza física, sua falta de inteligência e sua psicologia frágil, mas também foi considerada responsável pela perda da moralidade do homem e, consequentemente, de toda a humanidade. Rabinos judaicos iniciavam os encontros no templo com a seguinte oração: “Bendito sejas Tu, Senhor, porque Tu não me fizeste mulher”. Os judeus vão invocar a Deus para declarar a mulher como a fonte primeira do mal.
O pecado original entrou no mundo por meio de uma mulher, Eva, que teria se deixado seduzir por uma serpente. Na sequência, Eva se tornará a representante de todas as mulheres através dos séculos e, cada uma delas, será considerada responsável pelos sofrimentos do homem e do afastamento deste de Deus. Como consequência de seu desvio, Eva teria sido condenada à eterna submissão a seu marido. A história de Adão e Eva abriu as portas para as maiores atrocidades contra as mulheres, sendo elas consideradas culpadas de todas as desgraças vividas pelo homem, dentre elas as perdas do paraíso terrestre e da vida eterna. Começa, à partir deste momento, a imagem da mulher sedutora, perigosa e pecadora original. Alguns séculos depois, as mulheres ainda serão associadas ao pecado, tendo nove milhões delas sido queimadas como bruxas ao longo da história.
Jesus, com toda sua grandeza, vem quebrar os padrões machistas da época, por meio da difusão do amor a todos os seres, sem distinção de sexo ou classe social. O Mestre tratava as mulheres com respeito, convivia com elas (Maria Madalena, Maria sua mãe, Marta, dentre outras), mostrando que elas eram dignas de liberdade e de direitos. Acredito que a cultura judaica da época não compreendeu a verdadeira natureza do homem e da mulher. Em termos contemporâneos, eu arriscaria dizer que Jesus foi um grande feminista, mas, em grande parte, extremamente incompreendido.
Discorremos mais detidamente sobre o cristianismo e o judaísmo mas, todas as demais religiões, que são feitas de Homens, foram agressivas e desrespeitosas para com as mulheres. Basta ver o que diz o Alcorão sobre a submissão do sexo feminino ao masculino para se ter uma ideia de como o islamismo trata a questão.
Faço, aqui, um pequeno adendo para dizer que minha crítica em relação às religiões se deve a situações reais e específicas que ocorreram por falhas humanas, não se estendendo para a espiritualidade como um todo que, ao meu ver, é uma das grandes chaves e solução para as mazelas deste mundo. Sem deixar, ainda, de reconhecer o importantíssimo papel das religiões para várias esferas das sociedades.
Durante a Idade Média, a igreja criou dois modelos de comportamento por meio dos quais as mulheres poderiam ser julgadas: o primeiro de Eva, a pecadora original, e o segundo de Maria, a mulher sem pecados, aquela que deu a luz à um filho sem contaminar o homem por meio do ato sexual. Entretanto, como nenhuma mulher conseguia atingir este status, já que a maioria delas era casada, Maria era considerada o exemplo perfeito. Consagrar a vida a um monastério era considerado como uma alternativa para escapar da obrigação de se casar e de ter filhos sendo, inclusive, a oportunidade para as mulheres estudarem.
E, em relação às grandes guerras e conflitos ocorridos nos mundo, por que nada nos foi dito sobre as mulheres? Aonde estavam? Como tais acontecimentos impactaram sobre elas? Durante todos os anos em que frequentei a escola, apreendi os pequenos detalhes destes grandes fatos históricos, mas jamais me foi dito sobre a situação das mulheres. Hoje vejo que esta omissão não se deve à irrelevância do assunto. Ao contrário, trata-se de fatos relevantíssimos, mas que não são contados em razão do monopólio masculino da história, que sempre foi relatada por homens, contanto suas próprias experiências.
Durante todos esses períodos históricos, muitas mulheres e homens se levantaram em defesa do sexo feminino e de seus direitos enquanto seres humanos. Entretanto, pouco ouvimos falar deles em nossa formação nas escolas e universidades. Algumas figuras de suma importância:
Christine de Pizan (1363-1430) foi poeta e defensora do papel importante das mulheres nas sociedades. Ela escreveu o livro “A sociedade das damas”, por meio do qual encoraja todas as mulheres à examinarem suas próprias vidas e à resistirem à discriminação. Christine já acreditava na educação como chave da emancipação feminina.
Olympe de Gouge (1749-1793) foi grande defensora dos direitos das mulheres e acreditava no potencial destas para assumir as funções tradicionalmente conferida aos homens. Foi autora da obra “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” (1791) (Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne), a qual tem como modelo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento culminante da Revolução francesa e que não contemplava as mulheres. Em razão de seus ideais perturbadores para a época, Olympe de Gouges foi guilhotinada, em 3 de novembro de 1793.
Mary Wollstonecraft (1759-1797), durante sua curta vida, publicou sua autobiografia. Ela difundia a ideia de que a submissão das mulheres não é fruto da natureza destas, mas da falta de educação e de conhecimento da sociedade. Ela não mantém um discurso de vitimização da mulher, mas foca na saúde destas e as encoraja a fazer exercícios físicos e mentais.
John Stuart Mill (1806-1873) foi um parlamentar que trouxe grande relevância para a causa feminista, tendo inserido o combate das mulheres no cotidiano de sua vida. Ele dizia que, se a vocação da mulher de permanecer em casa e de cuidar dos filhos é natural, por que é necessário impô-las a fazê-lo? Neste caso, elas não deveriam assumir tal vocação deliberadamente e sem questionamentos?
Estas são apenas algumas figuras importantes na história da luta das mulheres por seus direitos, o que demonstra que o feminismo não é um movimento recente, e que muitas das reivindicações dos séculos passados ainda podem ser considerados atuais, infelizmente….
Acredito ser de suma importância conhecer a extensão e a gravidade da submissão da mulher através dos séculos para fins de compreensão da importância de sua libertação no momento em que nos encontramos. Afinal, como pode haver um verdadeiro engajamento de homens e mulheres na causa feminista se não houver a compreensão do histórico de opressão vivido por elas? É neste ponto específico que acredito no perigo de se relatar apenas uma parte da história. Grande parte dos acontecimentos que envolveram a segunda metade da humanidade foi muito pouco ou quase nada relatado, o que inviabiliza a sensibilização e o engajamento de muito que, se inseridos no contexto, poderiam ter sido elementos de grande transformação da realidade das mulheres e, em última análise, do mundo.
Entendo que mundar o sistema nunca foi interessante e que, se não fosse pela luta incansável de alguns, possívelmente ainda não teríamos nem direito ao sulfrágio. A ignorância imobiliza as pessoas, mantendo-as pacíficas diante da realidade. Os homens dominadores sabiam disso e, por esta razão, tanta história foi e ainda é omitida. Fico imaginando quantas pessoas já poderiam ter levantado a bandeira das mulheres na história da humanidade, se o acesso à informação e à educação houvesse sido livre e indiscriminado….
Estendendo ainda mais a reflexão, me pergunto: Ao longo da história, a mulher foi considerada incapaz, imoral e até impura, o que serviu de justificativa para a sua exclusão dos cenários político, econômico e social. Mas, após alguns séculos de dominação masculina, será que vivemos em um mundo melhor em termos de paz entre os povos, amor entre os Homens, tolerância das diferenças, respeito ao meio ambiente e reverência aos valores humanos? Será que a contribuição futura da mulher – sua participação efetiva na gestão econômica e política – não trará consequências extremamente benéficas para as sociedades vindouras?
Eu, assim como vários estudiosos do desenvolvimento sustentável, do ecofeminismo e das demais vertentes que pesquisam formas inovadoras de modificação das sociedades, acredito que o empoderamento da mulher e a ocupação por elas de cargos estratégicos de poder poderá impactar no futuro das próximas gerações. Este assunto envolvente e super atual será objeto de um post a ser publicado em breve!